Texto comentado: “Pulsões de destruição e doenças somáticas” - André Green (2007)

Rafael Santos Barboza
7 min readAug 20, 2021

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Comentários sobre:

Artigo “Pulsões de destruição e doenças somáticas” (2007) de André Green, traduzido e publicado em 2019 na Revista de Psicanálise da SPPA.

Contexto:

O texto original do psicanalista francês André Green se chama “Pulsions de destruction et maladies somatiques” e foi publicado em 2007 pela Revue Française de Psychosomatique, revista científica fundada em 1991 por Claude Smadja e Gérard Szwec, com foco em discussões sobre a psicossomática a partir da psicanálise. Foi posteriormente traduzido por Vanise Dresch para a Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. André Green é considerado um dos principais nomes do que se costuma designar como psicanálise contemporânea. De acordo com José Martins Neto, “Green era um apaixonado pela Psicanálise e pela busca de um pensamento que tentasse expandir a obra de Freud, sem ignorar as contribuições dos principais autores pós-freudianos (Ferenczi, Klein, Winnicott e Bion)”. Entre seus mais importantes conceitos está a reflexão sobre a clínica do negativo.

Texto comentado:

André Green inicia o texto apontando que não é objetivo fornecer respostas finais acerca das possíveis relações entre pulsões destrutivas e as manifestações psicossomáticas, mas localizar essa discussão no cerne do debate psicanalítico da atualidade.

O psicanalista pontua ainda sobre as contribuições da Escola de Psicossomática de Paris na década de 50, a partir de Pierre Marty. Apesar de uma presença implícita das pulsões de destruição, refere que Pierre Marty preferia abordá-las sob o ponto de vista de organizações contraevolutivas, provavelmente, segundo o psicanalista, para evitar se inserir diretamente na polêmica sobre a pulsão de morte. Essa manobra teórica teria repercurtido em uma nova nosografia, baseada em “neuroses bem mentalizadas, neuroses de mentalização incerta ou mal mentalizadas, neuroses de comportamento e psicoses”. Sobre a mentalização, um importante conceito da Escola de Psicossomática de Paris, André Green aponta a existência de um dualismo entre soma e psique.

Desse modo, fica evidente, desde o começo do texto, que André Green propõe inserir a ideia de pulsão de morte dentro do campo da psicossomática, elaborando uma crítica à exclusão desse debate dentro das teorizações propostas pela Escola iniciada por Pierre Marty. Resgata a ideia de “movimentos individuais de vida e de morte” desse último autor para apontar que a noção de instinto de morte foi negligenciada, por mais que estivesse presente o aspecto de desvitalização. Assim, segundo André Green, na teorização de Pierre Marty, “o instinto de vida segue sua vocação ou toma o sentido invertido, sem que seja necessário invocar uma força antagônica que tenha a morte como meta”. Da mesma forma, mesmo quando há a consideração sobre uma “orientação natural contraevolutiva”, a pulsão de morte aparece de forma secundária. André Green escreve, portanto, que haveria uma ambiguidade nessa teorização, ao considerar essa pulsão apenas como uma consequência da “redução do potencial dos instintos de vida”. É importante aqui considerar que uma das principais propostas de Pierre Marty é pensar a psicossomática a partir de psiquismos carentes ou com dificuldades para a capacidade de simbolização.

Uma vez demarcada essa crítica, André Green tenta retomar o pensamento de Freud sobre as relações entre identidade de percepção e de pensamento, fazendo uma ponte entre aspectos do representacional e as noções de pensamentos primários e secundários. Para Green, “nas trocas relacionais do sujeito psicossomático, toda a subjetividade parece tender na direção da decifração-decodificação dos dados perceptivos”, apontando então para um aspecto muito discutido no funcionamento psicossomático, relacionado ao superinvestimento da externalidade e o desinvestimento ou carência em relação à interioridade ou ligação entre representações (a última, identidade de pensamento). Estado de alerta e rigidez inconsciente são, então, relacionados nesse tipo de funcionamento, o que, no entanto, produz uma pergunta: “Diríamos que esse estado de alerta busca barrar uma opressão imprevisível ou a prevenir um possível transbordamento agressivo?“. Ou seja, o estado de alerta como escudo contra o externo ou como uma para-excitação de um transbordamento agressivo?

O predomínio da fatualidade em detrimento da interioridade é assinalado por André Green, em que a repetição aparece como marca narrativa (como um “destino cego compulsivo”) e as possíveis ligações de sentido como que apagadas. Mesmo as marcas da destrutividade não são subjetivadas, com o traumático apresentando vestígios, mas sem ressoar ou se conectar naquele que o habita, “como se fosse necessário impedir a qualquer custo o acontecimento de viver sua vida dentro da psique, de examinar suas relações na conduta ou na relação com o outro, para que possam adquirir uma dimensão psíquica”. É preciso salientar que o psicanalista francês está abordando aqui um funcionamento mental predominantemente psicossomático, em que Green descreve uma necessidade de defender-se contra uma desorganização essencial ainda maior e que, assim, a tentativa é de “chegar a uma exterioridade de si em si mesmo” ou mesmo de “não ser nada para não deixar de existir”.

A própria ideia de interioridade e de alteridade é atacada no funcionamento psicossomático: “Falta-lhe o acesso a uma potencialidade que se atrele ao desejo, à referência a um outro”, escreve o psicanalista. Nessa paisagem de uma pulsão despojada de uma história, o presente nasce morto e o próprio horizonte relacional é desertificado, em que a vida aparece como sinônimo de ” retardamento de uma morte em curso”. Em vários momentos do texto, Green parece descrever a desvitalização da dimensão psíquica, carente de interligações.

Acerca da ideia de “descarga psicossomática”, André Green fala em presentificação e de atualização, em que prevalece a “desmetaforização”. Em relação à destrutividade, o psicanalista sugere que esses traços não aparecem em estado bruto, mas através de estilhaços de ligações psíquicas que foram impedidas de se realizarem. O que afeta o eu no seu interior é exteriorizado a partir do corpo: “As trocas não são transformacionais, uma vez que seu objetivo último é a repulsão da capacidade de interrogação pulsional pelo represamento ou pela anestesia de investimento dos novos objetos. O objeto, aliás, tem um status extremamente indefinível”. Sobre essa relação com o objeto, André Green explora essa indefinição, afirmando se tratar de um objeto que se aproxima de uma ameaça.

No texto, portanto, o psicanalista tenta discutir os funcionamentos psíquicos que produzem descompensações somáticas. Para isso, busca uma crítica dos próprios modelos teóricos propostos para a compreensão desse campo. Além disso, faz uma proposta para pensar o tema a partir da ideia de um trabalho do negativo e da destrutividade como uma “instância psíquica basal”. Parte de uma teoria do autor desde 1967: “[…] o que se dará como representação de objeto só é perceptível aqui sob a forma exterior à pulsão, que será apreendida em seu encontro com o objeto e em seu encontro com a quantidade móvel, conferindo-lhe um sentido”. Sobre esse assunto, recuperamos um trecho de artigo de José Martins Canelas Neto em relação às teorizações de André Green: “De acordo com sua maneira de pensar o psiquismo, o acesso à representação da fantasia favoreceria a analisabilidade das produções do Id, quer dizer, ascendendo à fantasia o Id tornar-se-ia mais visível para o Ego, que então poderia figurá-las. O campo das representações, portanto, é modulado pelas moções pulsionais”.

Como já observado, Green coloca de forma central a importância da energia psíquica e seus investimentos/traços. É necessário apontar que o psicanalista é conhecido por refletir acerca da questão do representável e do irrepresentável. Conforme apresenta o autor em entrevista: “[…] a introdução das pulsões de morte faz evidenciar de modo radical o problema do irrepresentável, ou seja, o que excede toda forma de representação, atacando portanto o próprio processo de representação”. A representação, além disso, para o autor, não é algo garantido ao psiquismo. Essa proposta é baseada na passagem de Freud da primeira para a segunda tópica, conforme afirma o autor no texto: “Já afirmamos que, se a obra de Freud privilegia a representação até 1920, é o afeto que passa em primeira posição posteriormente”.

Defende ainda, baseando-se em Freud, a impossibilidade de dissociar as pulsões do campo das defesas, tratando-a como intrinsecamente relacionais. Ao abordar a questão do irrepresentável, André Green não tenta excluir a questão das representações, mas o oposto disso. Na entrevista ao seu colega Fernando Urribarri, ele destrincha melhor essa questão, ao abordar o representante-afeto: “A representação, a meu ver, não se reduz ao plano do sentido. Ela também faz parte do plano de força. Isto é justamente o que a diferencia da representação filosófica ou do significante linguístico”.

Em retorno ao texto, Green apresenta sua hipótese da seguinte maneira: “O que caracterizaria o destino de uma forma de organização pulsional aplicável à psicossomática seria a ruptura precoce da ligação da pulsão (no sentido
tradicional) com o futuro objeto, a dessolidarização do componente energético pulsional do objeto que ela visa e que fica então à deriva, sem encontrar destinatário, sendo, portanto, privada da capacidade de ter seu fundamento modificado pela resposta que vem dele
”. A falha dessa ligação psíquica produziria um obstáculo na produção de relação de objetalidade. O autor reforça então a dimensão da pulsionalidade com a objetalidade como um par, no sentido ainda de que a representação, para que possa se estabelecer, necessita do objeto.

No campo da psicossomática, propõe-se então o destaque à desvinculação com “outra subjetividade fora de si”. Para André Green, desobjetalizar é também perder as propriedades singularizantes dos objetos. Nas manifestações psicossomáticas especificamente, haveria uma “perda da dimensão subjetivante da atividade pulsional”.

Desse modo, como observamos, André Green traça uma conexão entre os estados limites e o paradigma psicossomático, afastando de uma compreensão a partir de um modelo baseado no funcionamento neurótico. Em artigo sobre a função desobjetalizante em Green, Marilia Aisenstein e Claude Smadja categorizam as propostas do psicanalistaem relação às pulsões da seguinte maneira: 1) As pulsões possuem o corpo como fonte, entretanto, ela se efetua de forma dependente ao encontro com o objeto, sendo este último um “revelador da pulsão”. Atribui ainda às pulsões de vida uma função de ligação/desligamento/religação e às pulsões de morte uma função exclusivamente de desligamento.

Nos movimentos de construção e destruição, Green propõe um pensamento complexo, no sentido epistemológico: “A não mais conceber a vida e a morte somente como opostos, mas também como cúmplices, em que a própria vida não poderia se desenrolar sem a ação necessariamente complementar da morte […]”.

Ao final do artigo, o psicanalista traz para o texto o pintor Francisco Goya e suas Pinturas negras, encontradas na residência do artista, durante os anos de 1819 a 1823. O título das obras referem-se à sua estética sombria. Green faz um paralelo entre as imagens e as escolhas entre a morte e a vida.

Autoria:

Rafael Santos Barboza, psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista em formação pelo Centro de Estudos Psicanalíticos. Especialista em Psicologia da Saúde.

www.rafaelpsi.com.br

Email: santosbrafael@gmail.com

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