Texto comentado: “Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos” — Thomas Ogden (2005)

Rafael Santos Barboza
9 min readSep 12, 2021

--

Comentários sobre:

Capítulo “Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos” do psicanalista Thomas Ogden. Publicado originalmente em 2005 e, no Brasil, o primeiro capítulo do livro homônimo Artmed Editora de 2010.

Contexto:

O título original da obra de referência é “This Art of Psychoanalysis: Dreaming Undreamt Dreams and Interrupted Cries”, de 2005. O psicanalista Thomas Ogden, de uma forma muito original, fundamenta suas ideias a partir principalmente de Freud, Klein, Winnicott e Bion. A co-participação do analista dentro do processo analítico é um dos principais desenvolvimentos do autor. De acordo com José Luiz Petrucci, “o terceiro analítico uma quase-personificação da intersubjetividade”.

Texto comentado:

Já nas primeiras linhas, Ogden parece sintetizar em uma frase a sua proposta: “A psicanálise é uma experiência emocional vivida”. Essa aparente simples construção tem diversas repercussões teóricas e técnicas. A experiência psicanalítica não é teórica, adverte, portanto, desde o início. Aquilo que acontece entre analista e analisando é o principal objeto de estudo e reflexão, partindo desde o início do limite de que essa experiência não pode ser traduzida completamente.

Entre os autores da psicanálise, Thomas Ogden se destaca por seu estilo de escrita potente, reunindo ideias complexas através de articulações fluidas com a metapsicologia, vinhetas clínicas e mesmo à literatura. A própria ideia de “sonhos não sonhados” e de “sonhos interrompidos” do texto condensa essa proposta.

Estamos diante aqui do sonho enquanto processo transformativo da experiência. Ogden traduz incapacidade de sonhar como incapacidade de “elaboração psicológica inconsciente”. Essa questão repercute em uma dificuldade ou incapacidade de crescimento emocional. Uma parte do trabalho analítico seria então de “gerar condições para que o analisando (com a participação do analista) possa se tornar mais capaz de sonhar seus sonhos não sonhados e sonhos interrompidos”. O trecho entre parêntese é extremamente importante, pois Ogden salienta o papel da dupla nesse processo, que gera um “terceiro sujeito”, sendo esse terceiro “tanto o analista e o paciente quanto nenhum deles”.

O terceiro sujeito, desse modo, não é a soma entre analista e analisando, mas uma produção original. As intervenções do analista servem para que o analisando possam utilizá-las (o termo utilização lembra aqui o conceito de Winnicott de uso do objeto) como se fosse uma matéria-prima na construção ou reconstrução da capacidade de sonhar a própria experiência.

Thomas Ogden deixa claro sua base para discutir essas questões: a principal referência é a teoria de Bion na década de 60 sobre a função-alfa enquanto transformador de experiências sensórias brutas e não processadas, chamadas por Bion de elementos-beta. Os elementos-beta carecem de capacidade de ligação e, de tal modo, não são usados para pensamentos, sonhos nem memórias. Já os elementos-alfa são elementos pensáveis e sonháveis, seja durante o despertar ou o sono. Essa teorização de Bion sobre falhas na função-alfa partem principalmente da sua experiência com pacientes psicóticos, como aspectos que envolvem estados emocionais de indiferenciação entre sonho-vigília ou entre realidade externa e interna.

A premissa seria a seguinte: só há capacidade de sonhar se existem experiências sensórias brutas que foram transformadas em elementos inconscientes pensáveis, gerando pensamentos-sonhos. Um destaque importante é que, dentro dessa proposta teórica, nem tudo que ocorre durante um sono é um sonho, mesmo se houver elementos imagéticos visuais. Para esse tipo de experiência, Ogden prefere falar em “alucinações durante o sono” do que em sonho e assinala que “esses ‘sonhos’ que não são sonhos não envolvem elaboração psicológica inconsciente, nada do trabalho do sonhar”.

Já os pesadelos são compreendidos como “sonhos ruins”, enquanto os terrores noturnos são “sonhos que não são sonhos”, diferenciando-os. Tal diferença, segundo Ogden, se daria inclusive em termos de padrões neurológicos. No terror noturno, poucas lembranças são geradas após o despertar, tratando-se mais de uma lembrança do que foi sentido, como uma sensação de perseguição ou de opressão: “Aparentemente, não existe memória consciente ou inconsciente da experiência”. Partindo das terminologias de Bion, o terror noturno seria feito exclusivamente de elementos-beta e, para Ogden, o terror noturno é um “sonho não sonhado” ou mesmo aparece como uma experiência que não merece ser chamada de sonho, devido às suas características.

Já um pesadelo merece a configuração de um “sonho”, segundo o autor. Nesses casos, o sujeito frequentemente possui lembranças e é capaz até mesmo de falar sobre a experiência, mesmo com o sentimento de medo envolvido. O pesadelo possui um ponto em que o sujeito não pode prosseguir, o que Ogden chama de um sonhar interrompido. Esse ponto-limite envolve um aspecto em que o sujeito se vê diante da incapacidade de “gerar pensamentos-sonho”, adentrando uma experiência emocional perturbadora, geralmente seguida pelo despertar. No pesadelo ainda existe elaborações psicológicas, já no terror noturno essa elaboração inexiste. No pesadelo há possibilidade de crescimento, enquanto que no terror no turno “nada muda em consequência do evento psíquico”.

Ogden, por diversas vezes no texto, atrela a capacidade de sonhar com a capacidade de crescer ou mesmo podemos lembrar da capacidade de aprender com a experiência, de Bion. Desse modo, alguém que busca uma análise seria uma pessoa que está sofrendo emocionalmente devido à incapacidade de sonhar ou mesmo à perturbação que envolve os sonhos interrompidos. Tornar-se mais capaz de sonhar a própria experiência é, então, um dos grandes desafios de um processo de análise, como a criação de uma porta para mudanças psíquicas. Essa proposta envolve tanto um aspecto psicodinâmico como metafórico. É preciso lembrar que o sonhar aqui também envolve o período de vigília.

Um paciente, desse modo, buscaria um analista no sentido de pedir ajuda para que possa sonhar. Ogden fala de grupos de pacientes que buscam a análise devido a terrores noturnos (também no sentido metafórico), ou seja, sujeitos diante de experiências não sonháveis: transtornos psicossomáticos, perversões graves, encapsulação autista em sensações corporais, estados de desafeto, estados esquizofrênicos de não-experiência. São psicopatologias que apontam para uma dificuldade ou impedimento psíquico de atribuir significado à experiência, de construir ligações entre aspectos vividos.

Haveria também o grupo de pacientes relacionados às experiências dos pesadelos ou sonhos interrompidos. Ogden faz referência à expressão “grito interrompido” de Robert Frost:

Sou um que travou conhecimento com a noite.
Eu fui passear na chuva — e na chuva voltei.
Deixei longe a luz mais distante da cidade.

Olhei a mais triste ruela da cidade.
Passei pelo vigia em sua ronda
E para não explicar baixei os olhos.

Fiquei imóvel sem o barulho dos meus passos
Quando de longe um grito interrompido
Veio, por sobre as casas, de outra rua,

Mas não era chamado ou despedida;
E mais longe ainda, numa altura incrível,
Contra o céu, havia um relógio iluminando

Proclamando que a hora não era certa nem errada.
Fui um que travou conhecimento com a noite.

Estamos diante de um sujeito que se vê no limite da sua capacidade de sonhar, não conseguindo cruzar essa fronteira, entrando na dimensão do perturbável: “Ele precisa da mente de outra pessoa — ‘que tenha travado conhecimento com a noite’ — para ajudá-lo a sonhar o aspecto de seu pesadelo que ainda está por ser sonhado”. Nesse trecho do texto, a excelente forma de escrita de Ogden fica clara, ao fazer uma passagem da literatura para a psicodinâmica, sinalizando que os fenômenos neuróticos ou não-psicótico relacionam-se aos sonhos que ainda não podem ser sonhados e os fenômenos psicóticos como o insonhável ou experiências impedidas psiquicamente de serem elaboradas. O autor acrescenta que na dinâmica neurótica, os sintomas preenchem o lugar daquilo que vai além do sonho interrompido.

No manejo clínico, a partir dessa proposta teórica, o devaneio aparece como uma forma de escuta, no sentido de estar receptível aos sonhos não sonhados e aos sonhos interrompidos que aparecem no processo analítico, vividos na dimensão transferência-contratransferência. Para Ogden, os devaneios “constituem uma via de acesso essencial pela qual o analista participa no sonhar dos sonhos que o paciente é incapaz de sonhar por conta própria”. Em nota de rodapé, ele descreve que os devaneios incluem sensações corporais, ruminações, sentimentos cotidianos. No contexto clínico, esses devaneios não seriam produtos exclusivo da mente do analista, mas refletem aquilo que se passa no “inconsciente do paciente e do analista combinados”, na dimensão de um terceiro sujeito.

Considerando esse produto singular gerado pela experiência analítica, Ogden adverte que “é responsabilidade do analista reinventar a psicanálise para cada paciente e continuar a reinventá-la durante o curso da análise”. Isso não significa, como pode parecer, que é possível fazer qualquer coisa, mas aponta para a singularidade de cada relacionamento analítico. Aquilo que ocorre dentro do processo analítico não é nem totalmente do paciente, nem totalmente do analista, mas “sonhos de um terceiro sujeito inconsciente que é ambos e nenhum deles”.

Desse modo, o papel do analista é de criar condições de sonhabilidade, dentro desse espaço de intersubjetividade. Seria necessário salientar ainda que o terceiro não exclui a existência separada de analista e de paciente. O próprio analista também precisa ter a capacidade de “sair” desse terceiro para observar as experiências que surgem, possibilitando que, em alguns momentos, fale com o paciente partindo da observação dessa experiência.

Por parte do analista, esse que se coloca nessa posição necessita de uma maturidade emocional necessária em relação às problemáticas do analisando. Além disso, Ogden coloca como essencial que o próprio analista também “seja capaz de crescer emocionalmente” no processo com seu analisando, tornando-se cada vez mais o analista que o paciente precisa. As propostas do psicanalista parecem reforçar a metodologia analítica que zela pela livre associação, destacando para a busca de experiências que proporcionam um sentimento de estar vivo e de desenvolvimento da capacidade de sonhar-se.

Dentro dessa proposta metodológica, o crescimento emocional se dá no âmbito tanto do analisando como do analista. A autenticidade é enfatizada no sentido de uma verdade da experiência emocional. O enrijecimento teórico pode interromper esse fluxo. É necessário que o analista esteja receptivo para conhecer o seu paciente “a cada encontro analítico” e que esteja receptivo para ser afetado consciente e inconscientemente no encontro. Por ser afetado, para Ogden, traduz-se como receptivo a sonhar a experiência e, desse modo, aprender e crescer com ela.

Se aprofundando naquilo que ocorre nesse encontro analítico, Ogden também comenta a participação da linguagem, enquanto mediadora: “A consciência de nossos estados de sentimento é mediada por palavras”. A linguagem, desse modo, é utilizada para falarmos de uma experiência emocional. Essa tentativa de dar nome às experiências emocionais já é, para Ogden, um processo de enriquecimento, na maioria das vezes. Alerta, entretanto, que “existem momentos em que a insistência do analista em usar palavras para comunicar a experiência é antagônica ao trabalho analítico”. Em certos estados, aquilo que é sentido a dois é mais importante do que o que é dito a dois, propõe.

A unicidade da relação analítica é assinalada em diversos momentos desse capítulo: “A invenção de uma nova forma de relacionamento humano pode ser a contribuição mais significativa de Freud para a humanidade”. Essa singularidade é recriada em cada relação. Em determinado trecho, Ogden critica a rigidez de algumas formações, ao engessar a espontaneidade desse encontro: “As interpretações feitas por um analista que é afiliado a uma determinada ‘escola’ psicanalítica são frequentemente dirigidas ao próprio analista (a seus objetos internos e externos), e não ao paciente”. A rigidez da técnica, muitas vezes disfarçada em rigidez teórica, obscurece a experiência emocional.

O psicanalista norte-americano traz ainda uma vinheta de um paciente, partindo das consultas iniciais até outros momentos dessa análise. Nesse relato, fica mais evidente as propostas de Thomas Ogden. Um ponto interessante é a atenção do psicanalista às implicações do tom de voz do analisando (“O ritmo da fala do Sr. A era marcado por pausas breves, quase imperceptíveis, depois de praticamente todas as frases, como se estivesse se preparando para não ser surpreendido”) e dos próprios devaneios do analista durante os momentos analíticos (“Minha intervenção era em parte determinada por minhas observações das pausas ansiosas do paciente e pelo devaneio anterior sobre o paciente que não era paciente”).

Os devaneios do analista, na verdade, estão dentro do que Ogden chama das produções de um terceiro analítico, o mesmo ocorrendo com as associações do próprio analisando. Tais viagens do pensamento, nesse contexto, provocam uma amplitude da experiência analítica, segundo Ogden. Em diversos momentos, o autor mostra como as experiências do analisando e do analisando se cruzam, como produções de um terceiro sujeito analítico: “A fim de fazer trabalho analítico com o Sr. A, era necessário para mim fazer uso da experiência inconsciente com ele como uma oportunidade de sonhar (na forma de uma experiência de devaneio) alguns dos meus próprios “terrores noturnos” e “pesadelos” que se sobrepunham aos dele”.

Implícito no texto está uma proposta de Ogden em relação à ideia de “necessidade humana da verdade”. E ainda como em uma bonita expressão dita pelo analisando mencionado, “ouvir o som do pensamento”. Em uma nota de rodapé, como que escondida, Ogden propõe que as experiências emocionais não podem ser expressas em palavras, tratando-se então de uma tentativa de aproximação, na busca por poder sonhar sonhos não sonhados e interrompidos.

Autoria:

Rafael Santos Barboza, psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista em formação pelo Centro de Estudos Psicanalíticos. Especialista em Psicologia da Saúde.

www.rafaelpsi.com.br

Email: santosbrafael@gmail.com

--

--