Neurose obsessiva: pensamento/ação

Rafael Santos Barboza
9 min readAug 24, 2021

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“The obsession” de Rene Magritte (1928)

De início, é importante mencionar uma breve distinção existente entre a conceituação psicanalítica sobre a neurose obsessiva e a construção psiquiátrica, que geralmente utiliza os referenciais do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (comumente conhecido como TOC) e o Transtorno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva, as duas presentes no DSM-V. Segundo esse Manual Diagnóstico, a principal diferença é que a personalidade obsessivo-compulsiva é marcada por um padrão de excessiva rigidez e controle, não havendo a ocorrência de pensamentos intrusivos e a necessidade de rituais compulsivos. Mas ressalta que “ambos os diagnósticos podem ser dados”. Apesar de diversas proximidades, a psicanálise e a psiquiatria partem de visões sobre a subjetividade que são distintas. Nesse texto, daremos ênfase à compreensão psicanalítica do que se designou como “neurose obsessiva”, presente desde os textos de Freud.

É importante considerar ainda que não existe um perfil único do que seria um neurótico obsessivo padrão. A estrutura diagnóstica não deve diminuir a complexidade do sujeito, principalmente na psicanálise. O autor Luiz Gazzola dá um exemplo disso ao abordar a variedade de sintomatologias que podem se fazer presentes na neurose obsessiva: “[…] certo obsessivo pode apresentar-se como o avalista do pai, aquele que assume como sua a dívida simbólica do pai, pela qual ele pagará para sempre, trabalhando como um escravo. Tal outro sujeito obsessivo utilizará como estratégia a ‘falicização’ dos seus objetos, ou seja, emprestará a cada objeto de uma série interminável uma espécie de valor fálico, o que pode redundar, entre outros efeitos, em comportamentos de colecionador. Outro ainda estará preso numa paralisia temporal em que o futuro é sempre adiado, enquanto tal outro estará às voltas com a indecisão entre dois objetos amorosos, um idealizado, o outro degradado, mantendo o seu encontro com o objeto como algo da ordem do impossível”.

Ainda para Gazzola, a partir do referencial de Lacan, o autor cita os grandes operadores com os quais o obsessivo se detém: “a função do pai, a dívida, o significante fálico, a realidade, o tempo, a morte, o desejo. É em torno desses significantes-mestres que o sujeito organiza a estratégia que lhe permite manter sua posição”. O par obsessão e compulsão referem-se a pensamentos (obsessivos) e ações (compulsivas).

É necessário sublinhar que quando separamos os três tipos clássicos de neuroses de defesa (histérica, obsessiva e fóbica), estamos realizando uma operação conceitual e em termos estruturais. No entanto, quanto à sintomatologia, existe flutuação entre elas. Assim, a neurose obsessiva é uma estrutura clínica em psicanálise, enquanto que a obsessão (os pensamentos circulares e fixos) ou mesmo a compulsão (atos que costumam ser sistematizados, ritualizados, com tons imperativos) podem ser somente sintomas de outras estruturas. Nesse texto, especificamente, falamos da na neurose obsessiva ou da “obsessiva neurose”, termo utilizado por Manoel Berlinck.

Pensamento obsessivo, ritual compulsivo

O neurótico obsessivo vive atormentado pela fantasia de que os seus pensamentos irão se tornar realidade, ficando refém de superstições particulares. Muitos rituais compulsivos e pensamentos obsessivos têm relação com manter sob controle algo que é da ordem do incontrolável. Os pensamento ruminantes parecem intimidar o sujeito, produzindo rituais compulsivos para se tentar lidar de algum modo com o terror sem nome.

É preciso ainda demarcar uma diferença entre compulsão e impulsão. Enquanto a primeira refere-se a uma sistematização e repetição, a impulsão tem mais relação com algo que orbita sobre uma espécie de improviso. E o improviso é justamente aquilo que o neurótico obsessivo pode querer fugir a todo momento, tendo em vista que isso pode revelar a verdade inconsciente.

Já os pensamentos obsessivos também possuem um caráter intrusivo e invasivo, desencadeando a ritualização como uma forma de tentar aplacá-los ou controlá-los. Para Lacan, o “obsessivo é um homem que vive no significante” (Seminário 5). De um modo geral, os sintomas cerceiam a vida espontânea do sujeito, ao se impor rituais metódicos. Cabe destacar que, no terreno da psicopatologia, vai além de um simples gosto pela ordem ou pela sistematização. Muitas ritualizações do cotidiano fazem parte de formas de organização de tarefas, não sendo por isso um indicativo patológico. Tais sistematizações do dia-dia costumam ser formas de lidar com o inesperado e o desconhecido, mas por si só não representam necessariamente uma patologia psíquica.

Se temos o conflito histérico como vivido principalmente através do corpo, no neurótico obsessivo o cenário é o pensamento. O conflito acaba ligando-se (no que Freud chamou de uma “falsa conexão”) a determinadas condutas e hábitos do cotidiano: lavar as mãos, verificar as portas, checar vazamentos de gás, realizar atos que anulam os anteriores, entre outros.

As obsessões e ritualizações, assim, são entendidas como formas do neurótico obsessivo lidar com a sexualidade, a vida, a morte e a agressividade, assim como o histérico, por exemplo, lida com esse impasse de outra maneira. Defendendo-se do seu próprio desejo, o obessivo “fica preso em suas defesas como em uma armadura de ferro”. A vida do sujeito, assim, pode ser regida na sua maior parte por obrigações e proibições, sem espaço para a espontaneidade e o improviso criativo, pois isso seria dar brecha justamente ao que enxerga como perigoso na sua fantasia. Para dificultar o acesso à verdade do sujeito, o inconsciente neurótico-obsessivo constrói, então, labirintos e leis.

Freud fazia uma aproximação entre neurose obsessiva e religião, no contexto de um suporte ao desamparo. Em “Totem e Tabu” (1913), afirma que “poder-se-ia sustentar que um caso de histeria é a caricatura de uma obra de arte, que uma neurose obsessiva é a caricatura de uma religião e que um delírio paranóico é a caricatura de um sistema filosófico”. Dessa forma, o neurótico obsessivo pode amarrar o seu desejo sempre no campo do impossível, construindo uma espécie de totalitária religião particular, vivendo-a sob o temor de transgressão das leis que ele próprio edificou, como forma de dar conta da ambivalência do circuito pulsional.

No texto “Atos Obsessivos e Práticas Religiosas” (1907), Freud sinaliza que “reiterados esforços psíquicos são necessários para contrabalançar a pressão constante do instinto. Assim, os atos cerimoniais e obsessivos surgem, em parte, como uma proteção contra a tentação e, em parte, como proteção contra o mal esperado”. De modo, então, que a pulsão é vivida pelo obsessivo na ordem do excessivo, necessitando de uma contra-força que se dá pelo apego à ordenação e à ritualização. Seu próprio eu interno, portanto, precisa ser fortificado com barreiras e trincheiras, para que o excesso não vaze, o que poderia provocar uma angústia ainda maior que aquela que se dá nos processos cerimonialísticos. Assim, “o ego vê-se constantemente sob a ameaça do fracasso do recalque, o que dele exige esforço intenso e, ao mesmo tempo, constante para impedir tal emergência, processo que implica significativo dispêndio de energia” (Camila Farias e Marta Cardoso).

Dúvida e ambivalência

Freud chamou atenção para o componente bifásico de muitos rituais obsessivos-compulsivos: o cancelamento de uma ação, a anulação de uma ação por outra. A luta entre amor e ódio parece agitar o psiquismo nessa estrutura. De modo geral, o o neurótico obsessivo parece viver uma separação radical entre impulsos eróticos e agressivos, sob a vigília do controle e da moral. As sistematizações, ritualizações e ruminações operam como métodos de regular os impasses e conflitos psíquicos e a própria ambivalência que se presentifica em todo sujeito.

Desse modo, nas considerações sobre a neurose obsessiva, o componente da manutenção da dúvida é um aspecto marcante: “O neurótico obsessivo parece fazer de tudo para não saber o que deseja realmente saber”. A ambivalência amor-ódio, que é constituinte no psiquismo de todo ser humano, para o obsessivo é um impasse, o qual o mantém nos pensamentos ruminantes e cíclicos, que parecem manter um império da dúvida, acentuado pela libidinização do pensar. Freud sinaliza que “ficamos sempre com a impressão de que o instinto do conhecimento pode realmente tomar o lugar do sadismo na neurose obsessiva”.

Para o psicanalista Serge Leclaire,a dúvida é, em última análise, uma dúvida do amor: amor de si, amor do outro, amor de si pelo outro”. Surge aqui a dúvida como um significante que remonta ao esforço desgastante de equilíbrio na neurose obsessiva. A alimentação dessa parece proteger o obsessivo de ir ao encontro da angústia gerada pela verdade do seu desejo. Ainda segundo Leclaire, a dúvida passa a ser patológica quando “a impossibilidade de chegar a uma conclusão vem da impotência do sujeito, e quando os problemas que o habitam são obra de um trabalho estéril de pensamento e apenas expressam sua agitação mental”.

A dúvida obsessiva, portanto, não é da dimensão da curiosidade ou do querer saber, mas da suspensão do desejo e da ambivalência. Em relação às estratégias obsessivas, Freud afirma que elas “preenchem a condição de ser uma conciliação entre as forças antagônicas da mente. Essas manifestações reproduzem, assim, uma parcela daquele mesmo prazer que pretendiam evitar, e servem ao instinto reprimido tanto quanto às instâncias que o estão reprimindo”. Desse modo, o neurótico obsessivo perpetua o nó da ambivalência (conflito entre amor e ódio), mantendo o desejo na ordem do impossível e suas pulsões no espaço do entrincheiramento. Natalia Sedeu complementa em artigo que “na ambivalência, existe um sentimento intenso de afeição e uma intensa hostilidade inconsciente. Essa afeição excessiva, que busca reprimir a hostilidade inconsciente, apresenta-se no neurótico obsessivo como uma solicitude que se repete compulsivamente”.

Uma religião para si

Na literatura psicanalítica há uma forte aproximação entre a neurose obsessiva e a hostilidade, produzindo uma defesa do tipo formação reativa (tentativa de se defender de um afeto através do recurso ao afeto oposto). A anulação também é um componente importante, evidenciando o conflito pulsional vivido pelo sujeito. Assim, o par obsessão-compulsão carrega, de maneira metafórica, tanto o “demônio em ação quanto a religião que tenta exorcizá-lo.

A não realização das ações compulsivas costumam ser vividas como algo terrorífico pelo neurótico obsessivo, como se tivessem transgredido a uma lei sagrada. Também é comum haver uma espécie de sentido de auto-responsabilização exagerada, que também se relaciona à onipotência e às formações reativas. O sujeito pode acreditar que, se não executar uma determinada sequência de comportamentos, algo muito ruim pode ocorrer a alguém que lhe é querido.

Para Maria Anita Ribeiro, partindo das construções freudianas, as ideias obsessivas são produtos de um compromisso neurótico: “O recalque incide sobre a representação do trauma e o afeto é deslocado para uma ideia substitutiva. Desse modo o sujeito obsessivo é atormentado pela auto-recriminação sobre fatos aparentemente fúteis e irrelevantes”. Desse modo, as obsessões e compulsões possuem a característica de serem vividas pelo sujeito como tenazes e inflexíveis, mesmo que não possuam uma lógica ou um sentido aparentemente, como consequência da operação de substituir conexões representacionais.

Mas por mais ilógicos ou exagerados que os rituais obsessivos sejam, é preciso sempre lembrar que os sintomas ressoam as experiências vividas do sujeito em sua história. Alguns autores trabalham com a ideia de que na neurose obsessiva o recalque tem menos sucesso, deixando-o sob uma constante ameaça de fracasso, necessitando então de estratégias defensivas complementares como o isolamento do afeto, que provoca desconexões entre afeto e o conteúdo ideativo/representacional. De modo que seu ego é mais atento e faz isolamentos mais acentuados, mantendo muitos conteúdos afastados do pensamento, como a intrusão de fantasias inconscientes e a manifestação de tendências ambivalentes”.

O conflito obsessivo, sendo um impasse neurótico, se dá na ordem desejante, mais especificamente no caso do obsessivo, o desejo posicionado na ordem do impossível, abrindo espaço para a ruminação obsessiva. É importante sempre reforçar, o que vale para todo campo da psicopatologia, que os sintomas obsessivos é o melhor daquilo que o sujeito consegue fazer com os seus conflitos. Apenas eliminar os sintomas e seus mecanismos de defesa à força, portanto, pode jogar o sujeito em um desamparo ainda maior, justamente o desamparo ao qual tanto se defende.

No mecanismo psíquico, um afeto penoso se desliga de determinada representação e liga-se em uma representação substitutiva, sem conexão tão direta. A psicanalista Marion Minerbo destaca o componente de inibição de elementos de agressividade no obsessivo, ao afirmar que “[…] de modo geral, a inibição da sexualidade é mais frequente na histeria, ao passo que, a da agressividade, na neurose obsessiva”.

O neurótico obsessivo, assim, pode se ver amedrontado por suas próprias fantasias. A aproximação do saber do seu desejo o coloca à beira de um sentimento destrutivo. Para pôr uma barra diante dessa possibilidade, edifica um labirinto que o distancia da sua agressividade e pulsionalidade, que qual busca manter controle, mas sempre sob a angústia de um temido escape.

Para Camila Farias e Marta Cardoso, o neurótico obsessivo constrói uma morada rígida e ordenada, que exige uma manutenção constante e imperativa: “[…] encontramos o mundo interno do neurótico obsessivo às voltas com a irrupção de uma força pulsional excessiva, o sujeito procurando fazer frente a ela por meio da construção de um compulsivo aparato defensivo”.

Encarar a ambivalência desejante (erotismo e agressividade, amor e ódio) e assumir a responsabilidade pelo seu gozo, portanto, é talvez o grande impasse para o neurótico obsessivo, além de um desafio para o encontro clínico, em que tais conflitos se reatualizam.

Autoria:

Rafael Santos Barboza, psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista em formação pelo Centro de Estudos Psicanalíticos. Especialista em Psicologia da Saúde.

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Email: santosbrafael@gmail.com

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