Duplo e contato

Rafael Santos Barboza
5 min readAug 17, 2021

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“The Lovers” de Rene Magritte (1928)

Diversas articulações podem ser feitas acerca do conceito de duplo, principalmente a partir de uma aproximação da psicanálise com a literatura e o cinema. Destacamos, por outro lado, que não existe uma homogeneização teórica do conceito de duplo em psicanálise, estando articulado a diferentes concepções. As principais referências textuais são Otto Rank (“O Duplo” de 1914) e Freud (“O Inquietante” de 1919). A imagem de um duplo também está presente na história de Narciso, o personagem que se apaixona por sua própria imagem, sem reconhecê-la. Contribuições posteriores são igualmente ricas para pensar a questão.

Na literatura, em “O Duplo”, Dostoiévski escreve sobre o funcionário público Golyádkin, um sujeito com poucas habilidades sociais. Após sentir-se humilhado em uma situação que exigiu dele maior traquejo social, uma nova pessoa começa a acompanhá-lo: sua própria cópia, um duplo, mas em uma versão desinibida e ousada. A história se desenrola em sentimentos de admiração, inveja e rivalidade. Aquilo que o personagem gostaria de ser acaba substituindo o que ele é. Uma vez materializado, transforma-se, ironicamente, em um inimigo que persegue, não mais em uma referência de ideal.

Já com “O Médico e O Monstro” de Robert Louis Stevenson, o duplo revela uma dualidade no interior humano através de Dr. Kekyll (o médico) e Mr. Hyde (na história, o monstro) e uma ilusória aspiração para solucionar essa questão (em psicanálise, nesse caso, produzir uma cisão): “Creio que isto se devia ao fato de todos os seres humanos com quem tratamos serem uma mistura do bem e do mal; e entre os membros da humanidade, Edward Hyde era o único que representava o mal em estado puro.”

No filme “Dead Ringers”, do canadense David Cronenberg, que costuma trabalhar temas bioanalíticos em suas obras, há a história de gêmeos monozigóticos que atuam como ginecologistas, com situações que vão desde o gozo da fusão (uma das frases para a publicidade do filme é “Two bodies. Two minds. One soul”) e o mal-estar da rivalidade e da separação, que inclui a inserção de uma terceira figura entre os dois, uma paciente de ambos médicos.

Em “O Homem Duplicado’”, o escritor português José Saramago fala de um professor que se depara com seu duplo. Como se poderia esperar, as obras de Saramago parecem ideias de ficção científica, entretanto, os temas são tratados como dilemas existenciais. O livro resultou no filme “O Homem Duplicado”, que no original foi chamado de “Enemy”.

A questão do duplo também pode aparecer em personagens que não são fisicamente idênticos. Um bom exemplo está na tetralogia de Elena Ferrante, principalmente no primeiro livro “A amiga genial”, que aborda a amizade entre Lila e Elena. A relação de ambas é preenchida por admiração e rivalidade, marcadas pela ambiguidade: “Decidi que deveria regular-me de acordo com aquela menina e nunca perdê-la de vista, ainda que ela se aborrecesse e me escorraçasse. É provável que essa tenha sido minha maneira de reagir à inveja, ao ódio, e de sufocá-los. Ou talvez tenha disfarçado assim o sentimento de subalternidade, o fascínio que experimentava”.

Dupla

“Ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma”, escreve Jorge Luis Borges. O psicanalista Otto Rank articulou a figura do duplo com a ideia de imortalidade, em texto de 1914. Freud comenta essa obra no seu texto em que aborda o inquietante, o estranho familiar, em 1919: “O tema do Duplo foi minuciosamente estudado por Otto Rank, num trabalho com este título. Ali são investigadas as relações do duplo com a imagem no espelho e a sombra, com o espírito protetor, a crença na alma e o temor da morte […]”.

Freud, no texto, fala do encontro com um duplo como um tipo de experiência diante de um “estranho familiar” ou “infamiliar”. Há o exemplo do próprio Freud em uma experiência vivida na cabine de um trem, em que se inquieta com seu próprio reflexo no espelho, acreditando, nos momentos iniciais, ser uma outra pessoa.

A materialização do duplo, assim, costuma ser vivida nessas histórias como mobilizador de ideias de perseguição e dominação existencial, um sujeito que perde o seu estatuto de sujeito a partir da presença de um duplo, e se enxerga como um objeto-presa. Assim, se a duplicação pode produzir um sentimento de proteção, principalmente na infância, posteriormente provoca inquietação.

O duplo também sinaliza para um acontecimento irônico: a do desejo de tornar-se novamente o “ideal” finalmente realizado — contudo, isso acontece em outra pessoa — para piorar, alguém com o qual possuo identificação. O duplo, assim, pode ser vivido como alguém que raptou um gozo antes prometido. O encontro com esse tipo de duplo é vivido como um encontro com a falta. Outras vezes, o duplo aparece como uma versão mais livre de censuras, como no caso do Médico e o Monstro. Marcus Silva, em resenha do texto de Otto Rank, lembra que o duplo “ora ela aparece como sombra, ora como reflexo no espelho e às vezes como um segundo eu real”.

Alessandra Martins desdobra alguns exemplos da aparição de duplos na literatura e no cinema: “São imagens iguais ou semelhantes às do protagonista que assumem suas características psíquicas, magicamente transpostas de um a outro. Confusões mentais da personagem sobre o seu próprio eu diante de uma figura similar e ao mesmo tempo estranha à dele embaralha conformações egoicas. Há, ainda, personagens que se desdobram em mais de um”.

O duplo, muitas vezes, representa esse contato radical consigo mesmo, a partir da materialização do imaginário. Também contempla a tentação por um modo de estar no mundo que seja diferente do habitual, ao mesmo mesmo tempo dentro do mesmo corpo-imagem. O duplo, no sentido que estamos abordando, não sintetiza necessariamente uma réplica, algo igual, mas uma espécie de projeção do que habita o interior. É produzido, então, em uma zona fronteiriça, de limites que se cruzam.

Duplo-rival

A estranheza de se ver, então, não como um reflexo do espelho, uma imagem especular, mas como imagem em carne viva. O psicanalista J.D. Nasio questiona o estatuto da imagem: “O que é então uma imagem? De todas as definições desse termo, a mais clara e rigorosa é a proposta pelos matemáticos. O que diz ela? Dados dois objetos pertencentes a dois espaços distintos, diremos que o objeto B é a imagem do objeto A se a todo ponto ou grupo de pontos de B corresponder um ponto de A”. O autor conclui, a partir desse raciocínio, que a imagem é um duplo exato ou aproximativo de algo que a antecede. Os duplos estão presentes nos reflexos (imagens visuais), no consciente (imagens mentais consciente), no inconsciente (imagens mentais inconscientes), entre outros suportes. O duplo do corpo, portanto, para Nasio, é a nossa imagem corporal.

A estrutura mesma do duplo especular compreende a briga por um objeto de desejo que é almejado”, escreve Diana Rabinovich. Na literatura, esse duelo de duplos é muito presente. Na etimologia da palavra “rival”, está o sentido de economias predominante agrícolas, em que era preciso disputar (“rivalizar”) o uso de um mesmo rio.

É, assim, muito comum que o duplo nos leve à ideia de rivalidade. Toda rivalidade, no fim das contas, talvez possa ser entendida como uma rivalidade contra o próprio ideal. Uma rivalidade não contra o outro, portanto, mas contra o duplo. Afinal, o que pode nos ser mais familiar e ao mesmo tempo estranho do que o mundo interno em que habitamos?

Autoria:

Rafael Santos Barboza, psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista em formação pelo Centro de Estudos Psicanalíticos. Especialista em Psicologia da Saúde.

www.rafaelpsi.com.br

Email: santosbrafael@gmail.com

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